quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O pacote, p2

Por volta das nove da noite o interfone soou. A voz do porteiro, distorcida por um chiado forte, ruído estático, chegou aos pedaços. "Doutrrrr, rrrrrr shhhh shhh shhqui. Possoshhh rrrrxar subir?" Na portaria, ouviu-se a resposta. "Poshh, seu rrrr. Mandeshhh rrrr shhhoite". Destravou a porta da cozinha, foi até a sala, programou o sistema de som para tocar uma coletânea de sambas antigos e apressou o passo curto até  o banheiro para retocar o batom, mas não tocou nem retocou nada e apenas se olhou no espelho. Escutou o clique da porta da cozinha se fechando, o giro da chave e a voz de Belchior encher o apartamento com seu lamento fanhoso. Não fazia mal, gostava dele também, achava sua melancolia sexy. Samba, bolero, Belchior, tanto fazia.

Chegou na sala no momento em que, debruçado sobre o parapeito da varanda, o olhar perdido na transparência do prédio em frente, o moço repetia os versos da música.  Tinha vinte e conco anos, latino-americano, um leve problema de audição negligenciado na infância, e que se refletia em sua dicção, alto, musculoso, cabelos bem cuidados, bonito. Fazia psicologia ou administração de empresas numa faculdade com "metodologia baseada em cases", mensalidades razoáveis, ambiente superbom. Defendia isso tudo, "o caminho do sucesso", livros, fotocópias, academia de ginástica, estimulantes e as roupas de marca, como podia. Ela o conheceu através de uma amiga que o recomendou com entusiasmo. Era terno e profissional em boas doses.


Na verdade o moço era bem melhor que essa descrição precipitada que faço. Não se pode, por motivos óbvios, deixei isso bem claro no começo da narrativa, não se pode contar com minha boa vontade ou isenção neste ponto. Tivesse eu algum compromisso com a verdade, falaria de sua voz quente, incrivelmente timbrada, límpida e amadurecida para sua pouca idade, de um ar de criança boa, da tranquilidade que exalava de sua presença. Nada mais direi sobre isso, que ademais estorva meu relato.


Conversaram por algum tempo sobre coisas desencontradas, tão desencontradas que ele não entendeu de imediato quando o momento conversinha jogada ao vento havia terminado. Descuido que não se espera de um profissional. E ela, por seu turno, não percebeu que ele estava usando o perfume do ex, um ótimo francês que ficara esquecido no banheiro um ano inteiro, e que ela lhe presenteara no último encontro. Beberam algum vinho, não se entenderam sobre corpo, notas, buquê, se aquele português era divertido ou tinha personalidade. Deixaram tudo isso de lado e foderam bem, divertindo-se com o uso de alguns brinquedinhos novos que ela havia comprado durante uma viagem de negócios.


Passado tudo isso, não aconteceu nada relevante por uma ou duas horas. O apartamento silenciou para ouvir os sons que se formavam e se dispersavam algumas dezenas de metros abaixo.


Por volta da meia-noite, ele acordou em sobressalto, havia passado da sua hora, olhou pro lado e a viu adormecida, a mordaça tombada do lado esquerdo do rosto, o pulso direito, levemente avermelhado, pousado sobre a testa. Essas imagens lhe chegaram um tanto distorcidas. Ela parecia em sono profundo, lívida, imóvel, respiração imperceptível.  Com o coração acelerado, ele aproximou a mão da cabeleira negra de, espalhada sobre o travesseiro, mas antes que pudesse tocá-la, ouviu o barulho de uma cadeira se arrastando e papel sendo rasgado no cômodo ao lado.

Sacudiu- a levemente, mas ela não acordou - nem os ruídos no quarto ao lado cessaram. Uma voz cochichada pontuada por um riso discreto. Pensou no tal ex-marido, retornado dos mortos, e tentou despertá-la, pressionando seu braço. "Teu marido ainda tem a chave de tua casa?" Ela não respondeu.


Quanto ao ex-marido, posso afirmar que ele se encontrava no outro lado da cidade, envolvido com vídeos pornográficos... ou alguma série da Netflix.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O pacote, p1

Eu a sigo. Pelos olhos de seu amante, usando as câmeras públicas que consigo hackear, tomando notas do que me contam os porteiros, pagando-lhes as mentiras, imaginando-as eu mesmo ao confrontar os pontos cegos da sua vida. Eu a sigo. E assim narro: ah esse outono primaveril, sem qualquer retorno além dos bips do celular e dos bits no computador, qualquer retorno além deste calor do que não apodrece, oh Wedekind.


Chegou pelo correio no dia anterior.

"...noite!", "...oite!"

Antes que ela seguisse adiante, o porteiro levantou o indicador, como a convocar
a memória nesse gesto, e sumiu por detrás do vidro blindado. Quando ressurgiu, cansaço de fim de expediente, esboço de sorriso, trazia nas mãos um volume compacto embrulhado em papel madeira. Meneou a cabeça por duas vezes, tossiu o mesmo número de vezes atrás da mão esquerda em concha, abanou-se e depositou com grande  delicadeza o envelope sobre o granito; ela o recolheu emitindo um som ininteligível, quase um grunhido, e saiu ondulado seus passos. Escrito a caneta, em letra cursiva, ali se via seu nome, endereço, carimbos, um remetente que a princípio ela não se deu ao trabalho de identificar.

No elevador tentou abrir a encomenda, mas teve de esperar até chegar no escritório, pegar o estilete na gavetinha da escrivaninha e com ele romper a camada de plástico e fita adesiva que protegia dois volumes. Dois livros, ambos com o dobro de sua idade, com "cortes amarelados, capa em bom estado, embora com sinais do tempo". Assim eles estariam descritos no sebo virtual, de propriedade de um argentino de quarenta anos, viúvo, modesto estabelecimento comercial localizado em algum lugar do interior de Santa Catarina, quando foram adquiridos, seis meses antes. Volume um e volume três de Nuvens: Uma História Comparada. 

Só que dessa aquisição ela não tinha qualquer recordação.

Observou a data da postagem nos carimbos, abriu sua conta bancária no computador e procurou qualquer  transferência realizada para aquele sebo no mês em questão. E no mês anterior. Não havia traço de um tal pedido em seus extratos bancários naquele ano, nem em seus registros de transações de compra de livros pela internet. Sequer se lembrava de algum dia ter considerado o tema tratado naqueles dois volumes, naquela história da qual faltava um meio, e quem sabe, eventuais volumes restantes. Volumes um e três, papel razoável, encadernação antiga com páginas ainda unidas... Não foram lidos antes.

Deixou sobre a escrivaninha a tal história não encomendada e com certeza incompleta, jogou os restos do embrulho no cesto de lixo, livrou-se do estilete e foi tomar banho. Voltou, anotou o nome do sebo num papel, fez uma bola com o envelope inutilizado, foi até a porta na ponta dos pés, tentou acertar o cesto num arremesso de costas. Errou o alvo e foi para o banheiro.



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Não trago boas notícias

Quando eu nasci, um cujo torto, desses que cospem azedo, disse, por cima do ombro da parteira de plantão, algo assim impreciso. Lamento, não trago boas notícias.... Depois, contam, olhou pra mim, piscou vários de seus olhos, gargalhou um macabro falso, e caiu numa dessas folias fora de hora - micareta, ou carnaval fúnebre, como dizem em minha terra. Até hoje espero que esse bloco passe de novo em minha porta.

sábado, 23 de novembro de 2019

Lembrança

Na hora agá de Deus e amém. Hora feita de bafejos antigos, calungas tombadas, estandartes de maracatu. Leões, elefantes, savana esquecida, de uma língua perdida. Pele e osso, do vento que entrou meia-porta a dentro. Vento que não pediu licença e veio ver entre as panelas um não sei quê. Suspiro de fumo barato que quarou breve numa réstia de sol. Sol antigo que alumiou aquele corpo pouco. Caveira insinuada por debaixo da carne extinta. Vento e sol que se  retiraram sem nada levar. Deixando pra trás os soluços, um e dois e três, e as poucas lágrimas de minha mãe. Respingo que logo secou, deixando ileso o negro do massapê.

E quando o vento e o sol se foram. Já não havia mais negra miséria, olhos de fúria, lembranças das tantas mulheres que se foram antes. Ursa de laursa, canários encanecidos, cantos tantos, galinhas e perus que vinham em disparada ao som de seu chamado. Curujinha! Havia por um ou dois instantes apenas isso de que falo. Seu corpo de vidro, a tuberculose ali guardada e cuidada - com a tinta daquele muco escrevo essas e outras linhas. E houve o eco de sua última palavra, o Não! rouco que ele disse pra Deus e pra sua desdita. A brasa dessa recusa e pedido.

Era talvez verão aquela luz. A taipa, as telhas vãs, um dois e três vizinhos que chegaram pra ver o morto. Cães ladraram e anunciaram longe a saída de um cortejo de esqueletos. Sempre há esses cães tais. Havia o caixão barato em que ele ia. Uma cova não marcada em cemitério de endereço ignorado. Havia minha mãe que voltou pra casa com a dor da notícia e do presságio. Da "morte que não é ave, inexiste e é o que resta".

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Caixa de Q - esboço

Ao desencontrar-me em rota de um destino certo, certo e nem por isso feliz, sob a prata azinhavrada e minguante da lua, na aridez difusa de uma paisagem deserta, nestas circunstâncias a encontrei.

Em altura, chegava-me um pouco abaixo ou acima da cintura. Regular compacta. Coisa feita de um mogno tirante a ébano, não fosse de outra matéria mais bruta em seu dispor-se densa, inamobível, perfeita. Isso dito, zumbia ela plena de ruídos internos, ocos que anunciavam, quem sabe: o laborar improvável de cupins de mandíbulas vigorosas, correr contínuo de água sobre pedregulhos. Sons quais. Murmúrio operativo de profundo clamor interno que supunham algum desentranhar-se de madeira.  Excreções desse trabalho em torno da caixa, no entanto, não havia. Serragem nenhuma,  pó de cupins ou broca nenhum. Compacto oco.

Aproximei-me com o cuidado que se deve ter ao explorar uma máquina de todo estrangeira e provei o gosto de sua parede superior com a ponta do indicador. Era como passar a língua em um vidro muito polido - provasse um gosto escorregadio que não era desse mundo. Havia também ali um pulsar que cessou em pouco tempo. Percuti com as mãos em concha aquele cubo perfeito, sem poros, e ele ressoou grave. O som se extinguiu devagar, junto com outros ruídos interiores, num glissando aconchegante tirante ao agudo e ao viscoso. Depois tudo se calou ao meu redor.

Procurei, ainda outra vez, com minúcia, uma passagem, o que digo, uma abertura naquela caixa de conteúdo deconhecido. Ao meu redor, nesse instante e estampido, a lua lambeu de si a claridade - pareceu-me - e o escuro da caixa, urna, o que fosse, alastrou-se nas paragens onde eu estava e era. A caixa quedava impermeável, impenetrável, em si contida. E aquilo que eu já não via, parede, visgo, textura de vidro, não resistiu ao meu toque por mais tempo.

Sem oriente, por inércia, procurei ainda e outra vez uma fresta, porta, uma passagem, mas agora, logo percebi, essa curiosidade mostrou-se absurda. O mundo exterior já não me era dado. Lançado em precipicio, dentro daquela urna, furna, tudo o que pude experienciar foi um eco longínquo  das pancadas poucas que eu dera havia alguns segundos, quando ainda estava do lado de fora da caixa. Esse som se propagava indefinidamente, com seus graves escorregantes. Dentro o branco de mil nevascas, a luz de incontáveis sóis, cercava tudo, infinito. E era lá que eu estava e errava na indistinção absoluta.

Disposto em algum deslugar desse oco, grito essa história, que digo: essa cena. Mas é possível que lá fora tudo o que você escute seja o suave ruído de um enxame de abelhas, o rumorejar cristalino de um regato.

[Fórmula básica de um conto qualquer]


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Desenredo - esboço

Como era o nome dela: Irlívia, Rilívia, Livíria? Guimarães Rosa não nos revela, embora a derradeira forma como ele a nomeia no conto em questão talvez  nos diga o que o narrador, se não o próprio autor, pensa dessa amante irrequieta. Vilíria, ele diz. Vil-íria. Em Guimarães Rosa nomes não são gratuitos.

Desenredo é um pequeno conto sobre o amor de um homem, de sua busca por transformar o fato, o ocorrido de que ele próprio é testemunha. Ou seja, trata-se de deslembrar  uma traição recorrente, colocar o amor em tábula rasa, em nunca havido. Fazê-lo através de um método claro: "por antipesquisa, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos".

Amor que quer corrigir a realidade, que crerá em tudo que o torne ainda possível, que não decrete o seu fim. Já amei assim. Ah, oh! Como Jó Joaquim, o amador de quem fala Guimarães. Esse Jó labora com heroísmo seu afeto, contra toda evidência, para fora da dúvida.

O Jó mais mais afamado, curioso, não é alguém que crê intimamente, sem duvidar, ou que combate de modo sistemático a dúvida, como GR parece sugerir ao escolher o nome deste personagem de Desenredo. O Jó do antigo testamento cobra explicações até de seu deus, e  se recusa a aceitar a justeza dos fatos porque eles implicam numa injustiça divina. Jó abomina a falta de sentido que resultaria de o mal sair de dentro do bem supremo. Crê num sentido último, mas pede explicação. Seu espírito é crítico e amante. Pois parece existir no amor essa crença última, não trágica, no sentido da vida.

Jó Joaquim, o do conto que encontramos em Tutaméia, sabe do amor mundano,ou seja,  da redenção pela idealização. Ao menos quer crer nessa possibilidade, como muitos de nós - solicito cúmplices... Lacan diria: todos nós. E mesmo Platão, aquele velhinho irônico, insistiria: o caminho do amor é a idealização.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Calvino e o chamado

Um cidadão qualquer, A, digamos, num anoitecer qualquer, em que sombras tímidas se escondem sob os pés dos transeuntes..., pois bem: esse cidadão tal chama por Teresa, mirando os últimos andares de um edifício antigo. Um passante, nomeemos a este B, se junta ao primeiro em seu apelo, ajuda anônima, simpática.

Em alguns minutos, há uma pequena multidão (C, D, E...) de solidários a bradar, a plenos pulmões, em variações polifônicas, tonais, modais, atonais, polirritmicas  o nome de Teresa. Só então descobre-se que o primeiro homem não sabe sequer onde está, ou conhece ali qualquer Teresa. Chamava por chamar... Algum tipo de brincadeira?!!, inquirem contrariadas as pessoas ali reunidas. De forma alguma!, responde A, quase ofendido. O grupo tenta, já sem motivação, uma última vez, chamar Teresa e o grupo se dispersa.

Teresa é o único personagem de fato nomeado no pequeno conto de Calvino (esqueça que eu nomeei os outros personagens A, B, C..., Calvino não o faz). Apenas Teresa é nomeada e sua existência é a mais problemática de todas.

Bom, concluo do pequeno conto que quem chama ou escreve há de estar necessariamente chamando Teresa. E que isso mereça fé é toda a questão.